O céu e a Terra
Impossível falar de meio ambiente sem falar da sabedoria ancestral. As florestas protegidas pelos povos indígenas hoje armazenam pelo menos um quarto de todo o carbono das florestas tropicais do mundo - cerca de 55 trilhões de toneladas métricas.
Sempre que o tema ancestralidade me vem à mente, lembro do livro "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que li em 2015.
Ao aproveitar o tempo livre das festas de final de ano, pude reler não apenas ele, como também "O Espírito da Floresta", publicado em 2023 pelos mesmos autores.
O objetivo aqui, não necessariamente é traçar uma resenha a respeito das obras, tanto porque, já existem algumas, nem tão pouco propor modos de vida inteiramente ancestrais ou análogo aos povos da floresta, mas apenas despertar discussões inspiracionais em torno de novos caminhos para um mundo menos sofrido para a maioria das pessoas que nele habitam.
Quem me conhece há mais tempo, sabe da paixão que tenho pelos livros, acumulando uma longa bagagem literária e volta e meia atribuindo referências em meus textos.
O livro "A Queda do Céu", é bastante oportuno face aos desafios socioambientais que hoje a sociedade se depara.
A obra é auto-narrada pelo líder indígena Yanomami Davi Kopenawa e escrita por Bruce Albert, etnólogo francês, responsável por traduzir, da língua indígena para o francês, mais de uma década de conversas e entrevistas de uma riqueza de detalhes imensurável.
“A Queda do Céu” exige calma, é necessário uma leitura cuidadosa e nos traz reflexões na qual sentimos a necessidade de compartilhá-las. Logo de início nos deparamos com uma citação bastante impactante e concisa do Davi Kopenawa:
"A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar."
Posteriormente o livro vai traçando um fluxo que nos leva para outra dimensão e pouco a pouco vamos absorvendo uma sabedoria milenar - que aliás me pergunto porque não tem sido ensinado nas escolas.
Aos poucos a sabedoria se mistura com as amarguras de uma existência dura e massacrada, que me faz lembrar da frase do antropólogo, filósofo e sociólogo francês Lévi-Strauss: “das inumeráveis brechas, sobreviventes isoladas da destruição do tempo, jamais darão a ilusão de um timbre original, lá onde ressoam as harmonias perdidas.”
Sonhos
Sonhar talvez tenha sido o segredo dos povos ancestrais. O sonho nos mantém vivos. Nos faz seguir em frente.
Saber sonhar é uma experiência muito presente na narrativa de Kopenawa e na existência Yanomami, que define seu modo de ver e compreender o mundo e suas possibilidades. "Os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos” (Kopenawa; Albert, p. 390).
O jogo político e econômico que estabelece o pragmatismo do capital doentio, sufoca a capacidade de sonhar a realidade que realmente importa.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer acreditava que seria impossível a distinção entre sonho e realidade. A vida seria um sonho muito longo, interrompido durante a noite por outros sonhos curtos. “Nós temos sonhos; não é talvez toda a vida um sonho? Mais precisamente: existe um critério seguro para distinguir sonho e realidade, fantasmas e objetos reais?”
A relação do humano com os sonhos também foi amplamente explorada pelo cinema com o filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa - uma sequência de 8 curtas exuberantes baseados em sonhos que o cineasta teve ao longo da vida, como etapas confluentes à uma existência estendida. Pela psicanálise por Freud, pela literatura por Marcel Proust, Franz Kafka, entre outros, e pelos orientais Taoistas com passagens notórias como conta a lenda que o sábio taoísta Chuang Tzu, que ao dormir, sonhou ser uma borboleta, mas ao acordar se perguntou: será que eu era antes Chuang Tzu sonhando ser uma borboleta ou sou agora uma borboleta adormecida, sonhando ser Chuang Tzu?
Descolonize-se
Mais que um livro, as 700 páginas são um verdadeiro manifesto cosmológico e espiritual do mundo que se extinguiu nas sociedades modernas. Um choque de humildade a qualquer leitor que tenha a coragem de mergulhar comprometido e sentir o quanto somos pequenos perto das dimensões ancestrais.
Um mergulho de descolonização, com doses de dilemas éticos e angustiantes que nos sacode e nos mostra o quão grandes poderíamos ter sido se não tivéssemos sido frutos de tanta ignorância que foi, e ainda é, a cultura de colonização ocidental.
Apesar de uma obra antropológica, esta perpassa sua natureza e ao mesmo tempo é filosófica, é ficção, é manifesto. Seu repertório conceitual e seu universo de referências, muitas vezes que estranhos aos nossos, se parecem cada vez mais com a realidade atual - que se desvenda a cada guerra por poder, secas, dias mais quentes, refugiados do climas e crises econômicas cada vez mais recorrentes.
Uma existência de luta
Os povos originários, sempre tiveram com a mãe Terra um parentesco intrínseco. Sua espiritualidade incorpora elementos da natureza em sua integralidade: os animais, o clima, as plantas, estabelecendo uma relação harmoniosa com a floresta - como entidade integrada à nossa existência e a tudo que somos.
Sua concisão cultural, é proposital, já que a multiplicidade já está presente na vida, na diversidade.
Podemos inclusive reconhecê-los pela preservação de grande parte dessa biodiversidade. São eles quem relativamente as protegem dos não-indígenas.
Falar do índio é falar da luta eterna contra o etnocídio. É falar de força e sabedoria.
Mesmo sendo dizimados nos 4 cantos do mundo, ainda são cerca de 500 milhões espalhados por 90 países e representam 5 mil culturas diferentes. Resistiram, e agora a sociedade depende da sabedoria de quem desde sempre vive enfrentando esse estado de crise contínua.
Uma vez li um texto do antropólogo Eduardo Viveiro de Castro que por sinal, prefacia “A Queda do Céu”, com uma afirmação na qual dizia:
“Pode ser que nós, ocidentais de classe média, o francês, o brasileiro rico de São Paulo, o americano, pode ser que passemos pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais.”
Viveiro de Castro acrescenta que: "é provavelmente uma falência degenerativa, muito mais do que apocalíptica, do atual sistema técnico-econômico mundial, que não vai se sustentar."
Os questionamentos em torno de uma suposta sabedoria alheia são contundentes: “Suas cidades estão cheias de casas em que um sem-número de mercadorias fica amontoado, mas seus grandes homens nunca as dão a ninguém. Se fossem mesmo sábios, deveriam pensar que seria bom distribuir tudo aquilo antes de começar a fabricar um monte de outras coisas, não é? Mas nunca é assim!” (Kopenawa; Albert, p. 419.)
Regeneração dos saberes
Muito tem se falado na regeneração do planeta. Essa caminhará a passos lentos se não acelerarmos a regeneração de saberes.
Não podemos permitir que o ideário Brasil que cresce a revelia de uma cultura de bem-estar a todos e do meio ambiente, represente seu povo.
Muitos dos saberes necessários para revertermos nossa condição sempre estiveram aqui. Apenas foram negligenciados, ou se perderam.
Um processo cultural de recuperação, preservação e revitalização das tradições, práticas e conhecimentos ancestrais transmitidos pelas comunidades indígenas ao longo de gerações, será vital para o futuro do planeta.
Entre os valores que aprendemos com indígenas é o compromisso com a verdade na relação com o outro. Que também se perdeu na relação ocidental.
Me recordo da bela experiência cinematográfica colombiana "O Abraço da Serpente", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2016. Aclamado no Festival de Cannes com dez minutos de aplausos em sua primeira exibição. Em mais de uma cena a decepção do indígena KaramaKate com as mentiras do homem branco e a decepção no passado com o etnógrafo Theodor Von Martius e Evan no presente, já que o filme se passa em dois tempos. "Você é igual a todos os brancos. Igual aos barões da borracha."
A mentira, desde sempre radicada no imaginário ocidental, hoje alcança patamares ainda maiores em nome do sacrossanto da modernidade. As pessoas estão compulsivas pela mentira, o negacionismo aumenta, a alienação sociocultural é alimentada pelas mídias sociais, os limites éticos são esgarçados.
O devir das atividades econômicas e culturais nos auto-exclui pela vontade de uma escolha civilizatória que nos impede de nos modificarmos. Por livre arbítrio, escolhemos um modo de vida que se exauriu.
Conclusão
O imperativo, é que precisamos nos despir de todo o preconceito étnico que permeia a sociedade contemporânea e aprender com eles. Caso contrário, será ainda mais difícil passar pela extinção na era do Antropoceno.
A extinção em si, já esta em curso, só não percebemos pela dificuldade por estarmos inseridos dentro dela. Até que a velocidade das mudanças escapam da nossa vã capacidade de agir. O planeta tem pressa.
Na Animba, acreditamos no poder das palavras como ferramenta de emancipação socioambiental. As mudanças culturais têm o poder da transformação e da construção coletiva de futuros desejáveis.
Trabalhamos para que que a sociedade abandone de vez suas narrativas de terror e morte, na qual prevalecem os preceitos que a natureza é nossa escrava e produtividade apenas é sucesso, para adotarmos amplamente uma mudança cultural que prioriza as narrativas de amor e vida, onde a natureza é nossa família e bem-estar é o sucesso - preceitos que os indígenas sempre defenderam.
E assim, não poderia deixar de terminar esse texto, com o discurso histórico de Ailton Krenak (um imortal da Academia Brasileira de Letras) na Assembleia Constituinte em Brasília - 1987: ÍNDIO CIDADÃO? - Grito 3 Ailton Krenak
Por Luciano Sousa